Em cinco anos, mais de 260 crianças foram abusadas em Mosqueiro
Por: Villian Nunes
Uma das principais opções de lazer e refúgio de quem mora na capital paraense, a ilha de Mosqueiro é conhecida pela calmaria que lhe rende até o apelido de “bucólica”. Entretanto, por trás do distanciamento oferecido pelo distrito de Belém, que fica a cerca de 70 quilômetros da capital, está uma triste realidade vivida por crianças e adolescentes em vulnerabilidade: um alto risco de estupro em relação ao tamanho e característica da localidade. Desde 2017, conselheiros tutelares têm lidado com constantes casos de abusos sexuais contra crianças e adolescentes, que, até maio deste ano, somam 261 ocorrências. E não há ideia do tamanho da subnotificação.
Em 2017, os conselheiros atenderam 74 crianças e adolescentes que foram abusados sexualmente. Em 2018, foram 72. Em 2019, foram 56. Já em 2020, uma provável subnotificação por conta da pandemia de covid-19 fez com que a média caísse para a metade, com 35 registros. Até maio deste ano, já foram 24 casos, que representam 68.57% dos registros do ano anterior. A maioria das vítimas são meninas.
Já os dados oficialmente registrados pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) foram menores. De janeiro a maio deste ano, foram registradas nove ocorrências de abuso de vulnerável em Mosqueiro. No ano passado, de janeiro a dezembro, foram 32 ocorrências computadas e, em 2019, foram 17 ocorrências.
Apesar de considerar a demanda alarmante, o coordenador do Conselho Tutelar de Mosqueiro, Wagner Santos, avalia que os números não correspondem à realidade. “A verdade é que têm ocorrido muitos abusos que não são denunciados aqui na Ilha”, aponta. Para ele, a brusca redução de registros em 2020 está relacionada ao fechamento das escolas, principais aliadas no combate ao abuso sexual de crianças e adolescentes.
“Ano passado foi um ano atípico. Devido à pandemia, caiu bastante porque não tivemos mais tantas denúncias. Sempre quem nos ajuda são os colégios, professores, pedagogos. Se eles veem algo diferente nas crianças, geralmente trazem isso. Por não ter aulas, isso fica mais difícil”, pontua o conselheiro tutelar.
Wagner explica que bairros mais populosos são os que tendem a ter mais ocorrências de estupro de vulnerável. Entre eles, estão Carananduba, Maracajá, Ariramba e a Vila, no centro da localidade. O profissional observa que, diferente do que se possa imaginar, não é no período de veraneio que as ocorrências aumentam, mas quando os turistas esvaziam o distrito.
A conselheira Lilia Saldanha aponta que as vítimas não têm um perfil. São crianças e adolescentes que podem com menos de um ano de idade e quase a maioridade completa. “Infelizmente, a gente tem vítimas de todas as faixas etárias. Já atendemos crianças com meses de vida, de três anos, 14, 17…”, relembra.
“Isso são apenas os casos que chegam. Dos 70 que chegam, tem muito mais por trás”, acrescenta Josenildo Almeida, também conselheiro tutelar. A equipe conta ainda com o trabalho das conselheiras Laida Chagas e Valéria Cardoso.
Distância atrapalha acompanhamento
Além da subnotificação de casos, quando as ocorrências são registradas, há ainda outro empecilho: a dificuldade do processo. Lia Botega, psicóloga do Centro de Referência de Assistência Social (Creas) de Mosqueiro, explica que muitas famílias desistem no meio do caminho, por conta da necessidade de locomoção até a capital paraense para realização de exames e até pela impunidade dos criminosos.
“A gente tem uma grande impunidade no país, que não é uma realidade só de Mosqueiro. A gente tem um sistema judiciário abarrotado, em que a gente não vê uma celeridade nesse processo. Então o que acontece é que, muitas vezes, quando a gente tá acompanhando a família, eles chegam com a gente e começam a questionar porque não está acontecendo nada com o abusador”, pontua.
Segundo a profissional, a somatização da violência vivida com outras dificuldades desmotivam as vítimas. “Imagina uma pessoa que já sofreu violência, e que muitas vezes tem uma condição financeira de vulnerabilidade, ter que pegar uma estrada e ir fazer perícia, demorar por horas, ter que almoçar e depois voltar. É algo que a gente tem lutado pra ser diferente, pra que, pelo menos, esse deslocamento não seja tão oneroso”, pontua.
Lia estima que dos 600 prontuários que foram atendidos no Creas Mosqueiro, mais da metade giram em torno de violência sexual contra crianças e adolescentes. “Atualmente, por exemplo, a gente tem 122 casos em acompanhamento. Desses, nessa faixa de 70% são de violência sexual. E não só de meninas, como de meninos também”, afirma.
Mãe relata que o trauma é de lenta recuperação
O relato da mãe de uma menina vítima de violência sexual indica, em poucos minutos, a devastação de uma família atravessada pela dor. Mesmo recebendo acompanhamento atualmente, as feridas continuam abertas no seio familiar. Apesar do medo e da tristeza, que só quem passou algo similar entende, a mulher aconselha que as vítimas procurem ajuda.
“Quando o filho falar o que tá acontecendo, procure logo o Conselho Tutelar, a polícia, porque o que eu passei… só Deus sabe a tristeza. No meu caso, eu descobri. Então eu digo para as mães que busquem investigar seus filhos porque é muito triste. Meu desejo é que tudo corra bem, porque o que aconteceu com a minha filha eu não desejo pra ninguém. Foi uma coisa muito triste, que eu nunca esperava que fosse acontecer”, lamenta, emocionada.
Casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes podem ser denunciados pelo Disque-Denúncia 181, Centro Integrado de Operações 190 ou, ainda, pelo canal Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Não é necessário se identificar e a ligação é gratuita.