Os últimos falantes de uma das línguas mais antigas da Europa
Fonte: G1
Edição: Rafael Cruz
A icônica cidade-Estado grega de Esparta pode ter caído há quase 2,4 mil anos, mas atualmente, 2 mil pessoas ainda falam a língua desses antigos guerreiros: o tsakoniano.
Depois que Esparta foi saqueada, o tsakoniano sobreviveu apenas em alguns vilarejos isolados nas montanhas — Foto: POSNOV/GETTY IMAGES via BBC
Ao entrar no vilarejo de Pera Melana, nas montanhas ao sul da península grega do Peloponeso, é provável que você ouça o rugido de scooters descendo suas estradas estreitas e o chilrear dos pássaros roubando frutas maduras das árvores.
Mas se você se aproximar do café central do vilarejo, ouvirá um som bastante incomum. É o burburinho das conversas entre os mais velhos em uma língua de 3 mil anos, chamada tsakoniano.
Os falantes desse idioma são descendentes linguísticos da antiga Esparta, a icônica cidade-Estado grega, parte da rica herança cultural da população tsakoniana.
Thomais Kounia, conhecida como a “imperatriz do tsakoniano” por seu domínio da língua, conta à amiga sobre o pão que ela fez naquela manhã, mas meu tradutor grego não consegue entendê-la.
Kounia traduziu então para ele em grego, e ele me contou o que ela havia dito, como na brincadeira do telefone sem fio. Estou pasma. Essas senhoras são algumas das últimas falantes fluentes de uma das línguas vivas mais antigas do mundo.
Hoje, apenas cerca de 2 mil dos 10 mil tsakonianos, sobretudo idosos, ainda falam a língua tsakoniana — um idioma limitado a 13 cidades, vilarejos e aldeias localizadas nos arredores de Pera Melana.
Placas em tsakoniano e grego moderno dão as boas-vindas aos visitantes no vilarejo de Pera Melana — Foto: ANGELA DANSBY via BBC
Embora o grego seja a língua oficial da região, o tsakoniano costuma ser falado dentro de casa e ocasionalmente em público. No entanto, seu futuro permanece incerto.
“Estamos perdendo o tsakoniano sem professores autênticos”, diz Kounia.
“Tenho tentado preservá-lo nos últimos 40 anos. É meu dever fazer isso.”
O tsakoniano não é importante apenas para a identidade e cultura dos tsakonianos, é o único legado contínuo dos antigos espartanos. É também a língua viva mais antiga da Grécia — precedendo o grego moderno em cerca de 3,1 mil anos — e uma das línguas mais antigas da Europa.
“Se perdermos nosso idioma, não podemos afirmar que somos tsakonianos”, explica a professora e escritora Eleni Manou, que vive na cidade vizinha de Leonídio, a capital de fato da região da Tsakonia.
O tsakoniano é baseado na língua dórica falada pelos antigos espartanos, e é o único dialeto remanescente do ramo dórico ocidental das línguas helênicas.
Já o grego descende dos dialetos jônicos e áticos do ramo oriental.
E, embora ambos os idiomas usem um alfabeto semelhante, o tsakoniano tem mais símbolos fonéticos e difere na estrutura e na pronúncia.
Não surpreende que o tsakoniano esteja mais próximo do grego antigo do que do grego moderno, mas nenhuma dessas línguas é mutuamente inteligível.
Uma famosa frase no estilo tsakoniano foi cunhada por Leônidas 1°, rei dos espartanos, em 480 a.C. na Batalha das Termópilas, quando liderou 300 de seus homens e cerca de mil gregos em um embate contra cerca de 500 mil persas.
Dadas as forças desproporcionais, o comandante persa exigiu que Leônidas entregasse todas as armas ou morreria. Leônidas respondeu com o laconismo espartano: “Venham buscá-las!”
Laconismo era o dialeto dórico falado no estado espartano da Lacônia e, na Idade Média, ficou conhecido como tsakoniano ou tsakoniko.
“O tsakoniano é a principal prova da nossa conexão espartana”, observa Manou.
“E no coração, somos descendentes diretos. Para mim e muitos outros tsakonianos, quando vamos para Esparta, é como se estivéssemos em casa.”
Embora Pera Melana e os outros vilarejos onde o tsakoniano ainda é falado estejam localizados a cerca de 55km a 100km a nordeste da antiga Esparta, a distância geográfica da capital que outrora os governava ajudou na preservação do idioma.
A cidade costeira de Leonídio é a capital de fato da região da Tsakonia — Foto: LUCYNA KAZIMIERCZAK/GETTY IMAGES via BBC
Depois que os visigodos saquearam Esparta em 396 d.C., a cidade foi finalmente abandonada, e os espartanos restantes fugiram e se estabeleceram nessas áreas montanhosas.
Ao longo dos séculos, o tsakoniano foi preservado nessas comunidades agrícolas isoladas que discretamente transmitiram a língua de geração em geração.
Essas comunidades permaneceram relativamente isoladas até depois da Guerra da Independência da Grécia (1821-1829), que deu origem à educação em massa e à melhoria da infraestrutura.
“A construção de estradas e portos ofereceu às pessoas uma saída dos vilarejos”, diz Kounia.
“Muitos moradores nunca mais voltaram.”
Na década de 1950, a introdução da eletricidade em todos os vilarejos tsakonianos e o acesso às transmissões de rádio e televisão conectaram ainda mais seus residentes ao mundo exterior. Muitos também se mudaram para outros países em busca de melhores oportunidades de emprego.
Um deles foi Panos Marneris, hoje professor de tsakoniano, poeta e compositor que administra o site de idiomas Tsakonika.
“Até 1970, quando fui para os Estados Unidos, Tyros e outros vilarejos da área onde cresci falavam 100% tsakoniano”, afirma.
“Mas a cada ano que voltava para visitá-lo, um número cada vez maior de pessoas não falava (tsakoniano) e isso me incomodava. A estrada de Astros a Leonídio foi construída em 1958. Vinte anos depois, as pessoas pararam de falar tsakoniano.”
No fim dos anos 1950, cerca de 5 mil pessoas ainda falavam tsakoniano, de acordo com Manou. Mas esse número caiu para mais da metade nas décadas subsequentes, quando o grego moderno se tornou a língua nacional em 1976 e professores de fora foram à região da Tsakonia para ensiná-lo. Além disso, o tsakoniano foi estigmatizado como uma “língua camponesa”.
Como resultado, o pai de Manou, que era um falante nativo, se recusou a ensinar tsakoniano a ela por considerá-lo desnecessário e vergonhoso. Na verdade, grande parte da geração privou os filhos de aprender a língua — uma decisão que muitos agora lamentam, já que o tsakoniano é listado como uma língua “criticamente ameaçada” pela Unesco.
Nos últimos anos, os tsakonianos têm se esforçado ao máximo para manter sua língua viva — Foto: ANGELA DANSBY via BBC
Até a década de 1990, o tsakoniano ainda era ensinado junto com o grego em algumas escolas locais, mas depois se tornou apenas uma disciplina opcional. Hoje em dia, quase não há escolas nesses vilarejos, já que poucas crianças vivem lá.
“Apenas 12 crianças vivem no meu vilarejo hoje”, diz Kounia.
“É um grande problema não ter uma geração mais jovem para passar adiante o idioma.”
Embora a viabilidade do tsakoniano a longo prazo permaneça uma incógnita, o estigma do passado já não existe mais.
“Nos anos 1960-70, houve uma mudança de atitude em relação ao tsakoniano como algo a ser guardado como um tesouro, ao invés de ser escondido”, conta Manou.
“Na verdade, muitos jovens tsakonianos ficaram chateados com seus pais e avós por não falarem tsakoniano com eles. Eu implorava a meu pai para falar com meus filhos, mas ele se recusava. Agora está na moda entre a geração mais jovem.”
Hoje, professores, filólogos e políticos tentam avidamente reviver a língua. No mínimo, eles estão dando ao tsakoniano o respeito que ele merece, como o idioma do rei Leônidas, e não dos camponeses.
Em Leonídio, placas bilíngues em tsakoniano e grego dão as boas-vindas aos visitantes. Uma delas afirma com orgulho: “Nossa língua é o tsakoniano. Peça às pessoas que falem com você”..
O idioma também é destaque no museu tsakoniano da cidade; nos Arquivos Tsakonianos, uma associação fundada em 1954 para preservar a escrita tsakoniana; e no festival de verão anual Melitzazz, que apresenta a cultura tsakoniana: música, dança, tecelagem de tapetes, arquitetura em pedra e uma variedade local doce de berinjela.
“Hoje é uma vergonha se você não fala tsakoniano”, observa Haralambos Lysikatos, prefeito de Kynouria do Sul, em Leonídio, que tem muito orgulho de sua herança tsakoniana.
“É meu sonho que a maioria dos tsakonianos fale (a língua).”
Historicamente, o tsakoniano era uma língua oral; devido ao seu modo de vida austero e simples, os dórios usavam a linguagem apenas por necessidade e não escreviam nada. Na verdade, a palavra “lacônico” vem da Lacônia, cujos habitantes eram conhecidos por sua brevidade verbal e frases sucintas.
Portanto, há relativamente poucas palavras em tsakoniano — cerca de 8 mil a 10 mil, em comparação com até 5 milhões em grego moderno.
“É por isso que não existe literatura tsakoniana”, explica Maxim Kisilier, chefe do Departamento de Estudos Bizantinos e Gregos Modernos da Universidade de São Petersburgo, na Rússia, aclamado pelos tsakonianos como um dos melhores falantes da língua.
“Mas há expressões de amor.”
“A qualidade está acima da quantidade no caso das palavras em tsakoniano”, brinca Kounia.
Os moradores esperam manter o tsakoniano vivo criando dicionários e oferecendo aulas online — Foto: ANGELA DANSBY via BCC
A falta de vocabulário não é um problema, uma vez que o tsakoniano pega emprestado palavras que não possui do grego e até mesmo algumas do francês. O maior desafio é preservar a linguagem por escrito.
“O tsakoniano tem uma fonética muito especial e é difícil escrever tipograficamente”, diz Kisilier.
A melhor tentativa até agora é um dicionário de três volumes publicado pelo tio de Kounia em 1986.
Atualmente, vários falantes da língua estão pensando em atualizá-lo e republicá-lo online. Os municípios de Kynouria do Sul e do Norte e a associação dos Arquivos Tsakonianos apoiam moralmente a iniciativa, mas falta financiamento para colocá-la em prática.
“Na era da informação, com a internet, não podemos perder um idioma. Cada vilarejo tsakoniano deve ter um centro tsakoniano para seus residentes e aulas de tsakoniano devem ser oferecidas em Esparta e Atenas”, acrescenta.
Petris Dimitris, prefeito de Prastos, pretende criar esse centro em uma taberna abandonada em seu vilarejo quase deserto. Atualmente, apenas a associação dos Arquivos Tsakonianos e alguns outros locais oferecem aulas presenciais de tsakoniano.
No ano passado, a quarentena imposta pela covid-19 inspirou Manou a dar aulas online de tsakoniano pela primeira vez, abrindo uma grande oportunidade para expandir o ensino da língua. Ela também espera lançar um programa de rádio regional para unir as regiões de língua tsakoniana.
A revolução digital chegou até mesmo aos empoeirados Arquivos Tsakonianos, que pretendem digitalizar todas as suas publicações tsakonianas.
“Mais gente precisa se envolver, especialmente os jovens — faço um apelo a eles que se envolvam — para preservar esta língua”, diz Marneris.
No coração dos tsakonianos, seu idioma sobreviverá, mas não será uma batalha fácil. Dicionários digitais modernos podem salvar as últimas palavras dos antigos espartanos — mas apenas se, como diria Leônidas, os tsakonianos “venham buscá-las”!